segunda-feira, 9 de novembro de 2009

LÂMPADAS COLORIDAS - PARTE I

Lâmpadas coloridas
Intolerância, Ignorância e Diferenças
Texto de Rosane Santiago Cordeiro*

“Devemos respeitar todas as religiões e amar a todas as pessoas, sejam pretas, amarelas, vermelhas, brancas, marrons... A eletricidade flui dentro de uma lâmpada vermelha, verde, amarela ou azul; alguém diria que a eletricidade é diferente dentro de cada uma? Não. De modo similar o Divino brilha do mesmo modo dentro de todas as lâmpadas humanas na forma de alma imortal. A cor da pele não faz e nunca fez diferença...
Paramahansa Yogananda
Guru Indiano que viveu no ocidente (palestra de 1937).

Parte I
Intolerância - a mais terrível doença que o ser humano pôde criar e que em pleno século XXI insiste em existir. Quando pensávamos que poderíamos esquecer os desastres racistas que aconteceram em tempos passados, estes ressuscitam ainda mais desequilibrados.Ingênuo pensarmos que ao terminar uma guerra, os sentimentos de ódio de milhares desaparecem e que a conseqüência é a paz... É tudo muito mais complexo.

Este texto trata de personagens pouco conhecidos, agentes da história mundial que tornaram-se invisíveis para sobreviver, atores de uma peça teatral que não acaba e os faz sujeitos de julgamentos cada vez mais rígidos. Gente bonita, talentosa, repleta de idiossincrasias, odiada,
amada, perseguida, singular... Com critérios de vida ligados a tradições milenares e talvez obsoletas. Estas mesmas que os fizeram, apesar de tão heterogêneos, um só povo – o cigano!

Milão, novembro de 2007.
Olhos nervosos me seguem, mas não é um ou outro olho, são todos os olhos, de toda gente que caminha por esta cidade cinza. Sou brasileira e viajei da Espanha, mais precisamente da Andaluzia, direto para Itália. Sevilha, e seus arredores, nesta época do ano parecem ser a única parte quente da Europa, não sei se por estar tão próxima da África ou porque as pessoas passam esse calor na profundidade das relações.

Cheguei à Estação de metrô de Milão onde fui encontrar um amigo brasileiro que vive ali há mais de quinze anos. Saímos de uma estação de uma cor e entramos em um trem de cor diferente, mudamos de linha. Durante este trajeto me sentia incomodada em como as pessoas me olhavam insistentemente. Que acontece? Perguntei a meu amigo. Estou borrada? Todos me olham de cima embaixo. “Não. Estás bonita, é isso”. Não, não é isso. Sei quando me olham por eu estar bonita, mas aqui homens, mulheres, meninos, me olham fixamente... Num sorriso constrangido meu amigo me disse: não me levas a mal se eu te disser uma coisa?
Parecia querer dizer algo muito sério, pior do que tudo que eu havia imaginado, ofensivo... Minha cabeça viajava nas possibilidades de estar fazendo algo que não era compatível com aquele povo, queria me inteirar, para, quem sabe, adaptar meu comportamento ao deles.
Mas eu estava normal, me pareço com eles, na Espanha sempre que pedia informações me perguntavam de que lugar da Itália eu vinha... Tampouco era a roupa, vi pelo reflexo do vidro do trem o casaco grande, negro como meus cabelos, a pele amarelada pela falta de sol em minha morenice agora quase européia e os olhos castanhos, tristes e temerosos, mais do que normalmente o são...
Longe, sozinha, num país estrangeiro e frio, muito frio. Gelo máximo quando ouvia e não compreendia o que meu amigo se esforçava por me falar “não fique chateada com o que te vou dizer, por favor, mas você está uma cigana perfeita”.

Em um primeiro momento não entendi o porquê eu deveria ficar chateada, mas meu amigo completou: não se ofenda, pareces uma cigana, mas uma cigana de nível. Cada vez que se justificava mais me assustava. De mim: silêncio profundo. Coincidência, pois meu plano de viagem era seguir dali de volta a Andaluzia, a fim de estar com amigos queridos que, não por um acaso, alguns eram ciganos.

Meu amigo loiro e gay, ostenta em seu histórico de vida lutas e discursos em prol de liberdades e minorias, mas suas opiniões com relação aos ciganos deixavam-me dúvidas sobre até onde vão os discursos “não preconceituosos”... Assustava-me ele acreditar que eu me ofenderia em parecer fazer parte de uma etnia que não era a minha. Iniciou-se então uma mudança séria em mim, um pesadelo interno, tive medo, já me escondia. Camuflava, quase sem pensar, meu cabelo longo para dentro do capote e fingia que era pelo frio. E era frio na alma. Comecei a falar quase em slow motion, era assim que me sentia - um pouco retardada, não tinha velocidade para encarar aquela cena.

Disse-lhe então que em cinco dias voltaria a Sevilha para estar em um lugar onde viveria diretamente com a realidade cigana da Espanha – aquela que, mais tarde eu descobriria, é dotada de um preconceito quase brasileiro, daquele negado, mas que existe e é forte. Enquanto eu falava, meu interlocutor me encarava como se eu fosse louca. Talvez começasse a ficar. Sentimentos estranhos me tomavam. Silêncio... Silêncio entrecortado por um olhar anônimo de outro alguém que insistia em me olhar com desdém.

O olhar é uma coisa muito importante para mim, uma vez me disseram que sou uma pessoa que quando encaro um canalha, que nunca se percebeu canalha, com meu olhar ele tem certeza absoluta de que o é. E dos olhares que recebi na vida, estes de Milão foram os piores.

Ainda não havia processado com profundidade o que meu amigo me dizia, mas sentia muito forte o sentimento de humilhação ao ser rejeitada, uma mistura de nojo por quem o recusa. Séria era a antipatia pelos milaneses que tomava conta de mim, junto vinha um sentimento de negação do que acontecia e um desprezo pelas atitudes daqueles, que me levava a pensar, erroneamente, na humanidade como um único povo - preconceituoso e xenófobo.

Mas o que é a xenofobia senão o medo ou pavor do diferente? Pensava de maneira ingênua que ninguém tinha o direito de julgar e coagir outro por sua aparência ou cor, tinha raiva e julgava. Mas para mim eles não eram diferentes, por isso o que me dominava ali não era xenofobia, era medo.

Em meu país existe muito preconceito racial, mas ao mesmo tempo temos uma assimilação do diferente que nos parece, se comparado a outros lugares, inacreditável. A frase você está uma cigana perfeita - dita pelo mesmo amigo, mas no Brasil - se transformaria em elogio, não seria
nada ruim, mas dito na Itália, precisamente em Milão eu, no mínimo, sentia minha vida em perigo. Pequena diante do que não conhecia, apesar de grande diante do que rejeitava. Enorme por saber da possibilidade de poder ser o que sou - o que sempre fui.

Chego só a estação final, pois meu amigo seguira por outra linha de trem, outra cor, outras cores, num arco-íris humano a ser repensado. Tinha que esperar na estação vermelha alguém vir me receber. Distraída pensava no que estava me acontecendo quando um trem passou e fez vento em meu rosto, voltando minha atenção para uma cigana Romá que, vestida de marrom olhava- me insistentemente. Estava prestes a falar comigo quando a amiga que eu esperava chegou. Viu a cena. Puxou-me pelo braço: “Cuidado, cuidado, essas pessoas são perigosas”. Mal sabia ela...

Em conseqüência disso tudo, no mesmo dia cortei meu cabelo até os ombros, crescia em mim algo como solidariedade, identificação e raiva. Uma raiva quase flamenca, quase zíngara, quase cigana. Talvez por isso o Flamenco represente tão bem a eles em todo mundo, nesta música existe medo, paixão, amor, raiva, melancolia, mágoa, rompantes de alegria em uma tristeza sem fim, duende. Olé!

Segui então para Florença a fim de rever uma tia que vive ali, fui passar a noite com minha tia mineira e mulata para na manhã seguinte voltar à realidade cinza de Milão. Os trilhos de trem levavam-me à cidade onde está uma das obras mais perfeitas de Michelangelo, o Davi – gente de pedra perfeita, cercada por nós, carnes em almas imperfeitas.

Fiz esta viagem em um quase frenesi mental, rumava a um destino que ainda ia me ensinar muito. A cabeça girava em planos novos para meu próximo documentário. A filha de minha tia é uma mulher alta, simpática e trabalhadeira e com certeza nos quase vinte anos que vive na Itália já passou por muitos preconceitos, principalmente por conta de sua aparência física, mulata, bonita e brasileira... Em nosso encontro, falei-lhe da idéia, cada vez mais forte, de fazer um filme sobre ciganos. E lhe perguntei como era a vida destes em Florença. A resposta foi rápida e rasteira: “Rosane não se meta com essa gente, aqui se colocarem todos eles em uma praça e botarem fogo o resto da população fingirá que não viu”.

Não viu. Duas palavras que faziam eco em minha cabeça. Não vêem. E isso independe de credo religioso, opção sexual, classe social ou cor da pele. O preconceito existe e cega. Em outras épocas olhos verdes, azuis, negros ou castanhos como os meus, humanos e desumanos, não viram os quantos milhares de ciganos foram executados na Alemanha nazista e fingem, ainda, como diz minha prima, que não vêem.

Talvez alguma coisa mude. Tive contato com alguns e percebo que nos últimos tempos muitos ciganos talentosíssimos têm aberto os olhos da sociedade para o embasamento saudável que existe nesta cultura - músicos, atores, bailarinos, médicos, advogados, historiadores, políticos,
enfim gente que com um trabalho digno representa a ciganidade com galhardia.

Neste meio tempo um pesquisador de comunicação me pediu um artigo sobre interculturalidade e eu sugeri escrever sobre os ciganos na Espanha. Infelizmente o foco da pesquisa não abrangia os espanhóis, então me pediram que desenvolvesse o tema direcionado a Alemanha e Itália. Eu poderia ter recusado e dito que não tenho contato ou que o pouco conhecimento que tenho sobre esta etnia/povo/raça está mais no Brasil e na Espanha, mas me fascinou a possibilidade (e responsabilidade) de escrever sobre o holocausto que aconteceu na Alemanha e o que, senti na pele, beira acontecer na Itália. Eu só vi depois de sentir. Proponho, então, que sintamos e vejamos um pouco mais:

Na Revista Tchatchipen, editada pelo Instituto Romanó de Servicios Sociales y Culturales, uma matéria tem como título “Os ciganos e o Holocausto: Uma Reavaliação e Uma Revisão” que nos remete ao ódio nazista e ao suplício cigano. Este texto escrito pelo professor Yan Hancock, diretor do Programa de Estudos Ciganos e do Centro de Documentação Cigano da Universidade do Texas (EUA) traz uma pesquisa muito bem feita a respeito do ocorrido com os ciganos no período no genocídio Hitlerista.

Hancock cita a conclusão de uma historiadora austríaca, especialista em Holocausto nazista, Erika Thurner sobre o assunto:
“Os judeus e os ciganos se viram afetados de igual forma pelas teorias racistas e pelas medidas adotadas pelos dirigentes nazistas. A perseguição dos dois grupos foi levada a cabo com uma intensidade e crueldade igual dos radicais. O genocídio judeu recebeu mais prioridade na sua
planificação e execução devido ao diferente status social dos judeus e por serem mais numerosos. Ao ser uma população mais reduzida, os Romá e os Sinti significavam um problema secundário para os nazistas.

O mesmo autor nos alarma quando explica a dificuldade de se estabelecer o número de assassinatos de Romás (ciganos) no Holocausto. Cita ainda o pesquisador Bernard Streck que diz que “qualquer intenção de expressar as vítimas do Holocausto em termos numéricos... não podem ser verificadas mediantes listas, ou arquivos dos campos de concentração, a maioria dos ciganos morreu na Europa Ocidental e Oriental, fuzilados pelos pelotões de execução ou por membros de grupos fascistas”.

Uma coisa é certa, conclui o Dr. Streck, muitas mortes não foram registradas pois aconteceram em bosques e campos onde os ciganos estavam. Tampouco existem dados de quanto era a população cigana antes da guerra. Os ciganos ficaram durante anos incluídos nos anais da história com “outras vítimas”. Um milhão e meio de outras vítimas.

Ainda resta muita documentação dos campos de concentração a analisar, Hancock se embasa também nos estudos da doutora Sybil Milton, historiadora do U.S. Holocaust Memorial Research Institute de Washington quando situa o número de vidas ciganas perdidas até o ano de 1945 “entre meio milhão e um milhão e meio de pessoas”. Esta informação foi corroborada em 2001 pela OIM (Organização Internacional para as Migrações), organização encarregada de encontrar e compensar as pessoas sobreviventes do Holocausto Cigano.

Tirando os judeus, a única população dizimada por motivos étnicos e que esteve a mercê de um radicalismo racial intenso foi a de ciganos. Yan Hancock diz ainda do esfacelamento da comunidade cigana no pós-guerra: “No final do conflito os ciganos eram um povo decapitado em busca de alguém que lhes explicasse o que acabava de acontecer. Em troca, foram recebidos por um muro de silêncio e esquecimento das autoridades, nem reparações, nem desculpas, nem filmes ou obras sobre sua dolorida situação, nem uma terra nova para instalarem-se ou defenderem-se”.

O próprio Yan Hancock conta a dificuldade de seguir com seus estudos sobre o tema em questão, pois este levou-o, inclusive, a viver o afastamento de pessoas que lhe eram queridas, pela franqueza excessiva com que tratou o assunto. Creio que cito este autor por identificação. No caminho para realizar a pesquisa tropeço toda hora em dificuldades e venho com isso treinando minha veia diplomática para lidar com gente (cigana ou não-cigana) aqueles que não querem que o assunto seja comentado.

Quando tratamos de família tudo se torna pessoal. A dificuldade de qualquer um em representar ou documentar a população cigana em suas mazelas e alegrias passa pelo crivo dos segredos e missões existentes em qualquer família, imaginem nestas. São como uma igreja: não é proibido entrar, mas só entra pra rezar quem comunga o mesmo Deus. Sabem mais do que ninguém diferenciar os gadjés dos ciganos, os que podem ou não “rezar a oração deles” e estão alertas com relação a isso, pois é o que os faz existir.


Rosane Santiago Cordeiro é jornalista, cineasta e pesquisadora de cultura
popular.Documentarista produz atualmente, dentre outros, o filme LA MIRADA – ciganos no
Brasil e na Espanha.

**sinistra como se entende no Brasil, uma coisa ou atitude sinistra identifica algo escuro, macabro - nada haver com a esquerda compreendida pelos italianos.

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